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Uma questão de amor e responsabilidade

Reportagem e fotos: Fábio Davidson (março/2006)

Biológico ou adotado? Em geral esta não é a primeira pergunta que fazemos quando somos apresentados ao filho de alguém. Mas, por muito tempo, a sociedade fez esta divisão, gerando situações constrangedoras e favorecendo até mesmo que a palavra adoção fosse omitida. O assunto é tão sério que até um crime, apelidado de adoção “à brasileira”, chega a ser cometido, em nome do amor.
Nos últimos anos, porém, um processo inverso começa a acontecer. Graças a personalidades nacionais como Marcello Anthony, Juca Chaves e Elba Ramalho, ou internacionais como Angelina Jolie, Sharon Stone e Gerhard Schroeder, a adoção passou a encontrar um espaço positivo nas páginas dos jornais e revistas e nas notícias de TV e rádio.
Este ainda é um pequeno passo. Uma triste estatística revela que o perfil das crianças adotadas não mudou muito no decorrer dos anos. As meninas recém-nascidas e brancas ainda são as principais procuras para adoção, enquanto há uma fila de crianças com mais de 3 anos esperando para serem adotadas
Pelo Brasil afora o assunto tem sido debatido. Em 1996 aconteceu o I ENAPA (Encontro Nacional das Associações e dos Grupos de Apoio à Adoção), na cidade de Rio Claro, interior paulista. O evento, que ocorre anualmente no mês de maio, deu origem a um decreto Federal que instituiu o dia 25 de maio como Dia Nacional da Adoção (Lei nº 10.447, de 09/05/2002).
Ao analisar estatísticas, porém, ignora-se que cada número envolve uma história de vida e é impossível generalizar o assunto sob o nome adoção. São diferentes histórias, dramas, encontros e desencontros. Como o da jornalista Yara Rocca, 40, que conheceu sua mãe biológica depois de três décadas.
Yara transformou sua história em um livro – A força de um cordão umbilical – onde revela as ansiedades de uma filha adotiva que só conheceu sua verdadeira história aos 31 anos de idade. E mostra que o choro e a tristeza do passado um dia podem se reverter em alegria e esperança.

Conte um pouco da sua história.
Há 40 anos atrás, em março de 1966, com cinco dias de vida, em fui dada pela Joana, minha mãe biológica. Ela me deu para umas freiras que trabalhavam em uma creche no Jardim Paulistano e cuidavam dos filhos dos empregados que trabalhavam nas casas da região. Meu pai adotivo, que era um dos mantenedores desta creche e queria adotar uma menina, foi chamado pelas freiras e imediatamente foi me buscar. Aí começaram 31 anos de altos e baixos, muita felicidade, muito choro, muita alegria, muito sofrimento, cada hora um jeito. E muita vontade de conhecer os pais biológicos, em especial o pai biológico, que diziam que tinha me rejeitado.

Como você encara sua adoção?
Minha adoção seria perfeita, se meus pais não tivessem mentido, ou melhor, aumentado demais a história. Se tivessem me posto com os pés no chão, com a minha verdade, acredito que não teria passado por metade dos problemas emocionais pelo que passei e que geraram até problemas físicos. Então eu acho que os pais que querem adotar os filhos primeiro têm que se resolver e depois adotar aquele ser. Filho adotivo não serve para tapar buraco de relação, para salvar casamento, para você se realizar nele, pois filho adotivo é como qualquer filho, veio ao mundo e você tem que amar. O problema do meu pai foi idealizar muito a filha que ele adotou. E isso ficou pior quando a minha irmã veio três anos depois. Hoje ela tem 37 anos, é limítrofe e deficiente auditiva. Aí eu tive que valer por duas, tinha que compensar e eles exigiam muito de mim. Isso foi um peso.

Mas essa cobrança também ocorre com os filhos biológicos. Você acredita que o filho adotivo sinta a obrigação de ser sempre “o primeiro” para corresponder à adoção?
É como se tivesse que ser sempre boazinha, afinal, se não fossem eles, o que seria de mim? Apesar que os meus pais nunca fizeram isso como uma imposição para mim, mas eu sentia que estava devedora. Puxa vida, eles se sacrificam tanto por mim...

Quantos anos você tinha quando soube que era adotada?
Eu estava brincando com uma amiga no quintal e, do nada, meu pai chamou a gente dizendo que iria contar uma história. Aí ele falou que eu vim de outra forma ao mundo.

Você já questionava alguma coisa?
Eu perguntava por alguma foto da minha mãe grávida e também não me achava parecida com meus pais. Eu era loirinha, de cabelo claro e minha mãe era morena clara. E no alto dos meus quatro anos, percebia que eu não tinha a cara de um nem de outro. Aí meu pai contou uma estória mirabolante. Mas acho que ele errou por amor. Ele quis amenizar um possível sofrimento por eu ter sido rejeitada. Ele também não sabia a história real mas, na cabeça de quem adota está: “Rejeitaram, eles não queriam o bebê”. E como alguém poderia imaginar que uma criança de 4 anos iria ficar remoendo aquele assunto por mais de 30 anos? Ele quis me proteger tanto que acabou me prejudicando. Ao invés de aceitar o amor deles, comecei a questionar a rejeição do outro, me perguntando: “Por quê me deram?”.

A sua adoção foi a chamada adoção “à brasileira”?
Eu tive uma adoção à brasileira, que significa receber a criança, ir ao cartório e registrar a criança como se fosse sua e se a mulher tivesse tido o parto em casa.

Você acha que este tipo de adoção cria uma ilusão para os pais, como se tivessem gerado a criança? A adoção à brasileira cria uma mentira. Os pais projetam que aquele filho é deles. Por um lado, acho legal, pois a criança não é tratada como filha de criação, como era falado antigamente. Eu nunca ouvi isso. Por outro lado, a sua alma sente que há algo errado ali. Fica um conflito interno, que, no meu caso, alterou completamente meu comportamento, meus sentimentos, a minha essência, que eu abafei para me tornar uma outra pessoa.

Quando a adoção era tratada em notícias de jornal ou novelas, isso te afetava?
Não, porque eu nunca fui tratada como filha adotiva. Sempre me trataram como filha legítima, inclusive os parentes. Todo mundo me adotou, foi uma inclusão total. Hoje, quando eu vejo notícias, me entristece o fato das mães jogarem seus filhos no lixo, na lagoa, no estacionamento. No meu caso foi diferente. Tanto a mãe que me deu, quanto a que me pegou tinham muito cuidado para que eu tivesse um bom futuro.

Você acredita que atualmente há uma mudança no comportamento dos filhos adotivos, graças a Internet, por exemplo, onde podem compartilhar suas histórias de uma forma mais aberta? Hoje eu dou graças a Deus pela Internet e em especial pelo Orkut [rede de relacionamentos]. No Orkut temos comunidades com filhos adotivos, mães que adotaram, crianças institucionalizadas, abrigos, associações, etc. O tema adoção está sendo mais revelado para a sociedade do que antigamente, quando parecia um pecado tocar no assunto. Artistas também viabilizaram esta aceitação.

Você escreveu um livro. Como foi colocar no papel a sua vida e qual a repercussão do livro?
Eu conheci minha mãe biológica em 97, quando eu tinha 31 anos. Desde que eu a conheci, na hora que eu me despedi dela me veio este nome, “a força de um cordão umbilical”. Não entendia este nome, era uma coisa minha com Deus, mas eu sabia que tinha que escrever este livro. Depois eu consegui entender o porquê deste título. Em um primeiro momento pensei que era porque minha mãe [biológica] também estava orando por mim, preocupada comigo, comigo na mente dela há 30 anos! E eu pensei, o sangue fala mais alto, essa mulher estava me atraindo até ela. Mesmo eu não tendo endereço e tendo como parâmetro uma mentira que não ia me levar para lugar nenhum eu a encontrei. Depois comecei a entender que o nome do livro se referia à força de um cordão umbilical que nos leva até Deus. Eu vim ao mundo pela Joana e fui criada e estou viva até hoje graças a Nena, pois alguém lá em cima escreveu que tinha que ser assim. Só vim ao mundo por essa forma. Mas quem desejou e planejou que eu estivesse aqui foi Deus. E, naquele dia, eu senti Ele tão comigo, Ele tornou aquele dia tão único e milimetricamente planejado e caprichoso em cada detalhe, que superaria qualquer choque ao encontrar minha mãe biológica.

Qual você considera a maior dificuldade enfrentada pelo filho adotivo?
O medo de ir atrás dos pais biológicos, o medo do que poderia encontrar. Também muita revolta, mágoa e mal entendido. Na Internet vejo que os filhos generalizam, acham que porque foram dados, foram rejeitados. Eu entendi hoje, depois de conhecer minha história, que eu não fui rejeitada, minha mãe biológica me amou e me ama até hoje. Mas ela não ia dar conta de ficar comigo com a vida que ela tinha. Então, por amor, ela me deu. E muitos filhos não sabem a realidade e acabam pré-julgando.

Parte desta culpa não estaria nos pais adotivos, por terem medo de perderem o filho adotado para os pais biológicos? Eu acho que os pais fazem de tudo para que os filhos não achem os pais biológicos, com medo de perdê-los um dia, serem trocados. Eu vi muito este medo na minha mãe, é uma fantasia. Minha mãe tinha medo que eu conhecesse minha mãe biológica e eu visse que ela “era melhor”. Ela se achava pior por não ter conseguido gerar um filho, se considerando inferior à mãe biológica. Os pais acabam fazendo de tudo para inviabilizar o encontro, não apresentam provas nem pistas para o filho ir atrás. E quando percebem que o filho está interessado em saber da origem, ficam magoados. E, muitas vezes, por isso, o filho recua.

Há três tipos de adoção: o aberto, o semi-aberto e o fechado, que é o mais comum no Brasil. Qual você considera o ideal? Eu acho que uma vez que deu, acabou. Tem que separar, até chegar o momento do adotado querer conhecer os pais biológicos. E os pais adotivos têm que dar abertura para isso acontecer.

Como o processo de adoção pode ser melhorado? Quem vai adotar, o casal, tem que ter 100%, não é nem 99%, é 100% de desejo de ser pai e mãe, assim como os pais que querem e podem gerar um filho. E, uma vez que você quer ser pai e mãe, através da adoção, deve deixar de lado a fantasia, principalmente quanto à questão de ficar escolhendo o tipo de criança.


IMPORTANTE
Está apta para adoção qualquer pessoa maior de 21 anos, independentemente do estado civil, desde tenha pelo menos 16 anos a mais do que a criança a ser adotada. O primeiro passo para adoção é procurar o Juizado da Infância e Juventude, onde é feito um Cadastro de Pretendentes para Adoção. “Adotar” uma criança, registrando-a como se fosse filha (adoção à brasileira), é crime e os pais biológicos têm chances de reaver a criança. Para que uma adoção tenha efeitos jurídicos plenos deve ser processada e autorizada judicialmente. Desta forma, o filho não recebe qualquer ressalva ou identificação que possa diferenciá-lo do filho biológico e são cancelados os vínculos familiares anteriores, impedindo quaisquer questionamentos futuros pelos pais biológicos.

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