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É preciso tirar as máscaras

INOCÊNCIA. Ingenuidade, pureza, ausência de culpa (Dicionário Houaiss)

Cerca de três décadas em uma das maiores capitais do Brasil e só agora posso dizer que começo a conhecê-la. Depois de muita polêmica, o prefeito de São Paulo consegue colocar em execução um projeto que visa uma cidade mais limpa, diminuindo a poluição visual. Aos poucos, propagandas saem, fachadas ficam expostas e a máscara da cidade cai. A princípio, eu não acreditava que seria uma grande mudança, mas andando pelas ruas, descubro uma cidade visualmente mais viva, mais alegre.

A primeira impressão é que as propagandas escondiam um grande descaso dos comerciantes em relação ao aspecto estrutural das edificações. Belos backlights, letreiros e afins, encobriam paredes mal pintadas, sujas e quebradas que, uma vez expostas, agora precisarão de reparos e cuidados.

O poder municipal conseguiu uma vitória no campo da estética estrutural. Porém o mesmo não acontece no aspecto social. O olhar do transeunte continua a esbarrar em crianças das mais variadas idades, espalhadas por esquinas, embaixo de viadutos, algumas delas assaltando, cheirando cola ou esmalte, sendo espancadas pelos pais, pelos seus pares ou pela força policial. Adultos dormem nas ruas, sem o mínimo de conforto ou higiene, distanciando-se do que chamamos ser humano e cada vez mais se aproximando do estado animal.

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman considera que em uma comunidade deveria acontecer uma volta à inocência, tornando a união entre as pessoas algo “desinteressado”. Porém, compartilhamento, solidariedade e paz são exceção, e não regra, quando percebemos que à nossa volta o que interessa é ascender, mesmo que, para isso, precisemos colocar uma máscara perante a sociedade e trocamos a inocência pelo individualismo e pela ganância.

Ao caminhar pelas ruas centrais ou periféricas é impossível afirmar que vivemos em comunidade. O contraste é brutal, a desigualdade é evidente, o descaso é incompreensível. Na avenida Paulista, por exemplo, pessoas dormindo no papelão ou jornal convivem com hotéis modernos e luxuosos. Pés descalços, sujos e machucados convivem com sapatos e bolsas de grife.

É como no mito de Tântalo, segundo o qual o filho de Zeus e Plutó é condenado a ficar submerso até o queixo em uma água cristalina, embaixo de uma árvore cheia de frutos. Quando Tântalo sente sede, a água escapa de seus lábios. E, quando sente fome e tenta alcançar as frutas, o vento as leva embora. Tudo que parece ao seu alcance foge às suas mãos.

A cidade de São Paulo começa a tirar suas máscaras. Agora resta aos cidadãos fazer o mesmo. É como afirma Bauman: “Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual capacidade de agirmos em defesa desses direitos”.


(Publicado em junho/2007 na Revista Ave Maria)

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