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Eu moro na rua, não tenho ninguém...

Reportagem e fotos: Fábio Davidson (abril/2004)


A frase, tirada da música de Renato Russo  “Pais e Filhos” revela a situação de milhares de pessoas que (sobre)vivem nas ruas, principalmente nos grandes centros urbanos. São Paulo tinha 8.706 pessoas em situação de rua no ano 2000, número que cresceu para 10.394 em 2003, segundo estudo realizado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), divulgado em 05 de novembro de 2003 pela Secretaria Municipal de Assistência Social.
Deste total, 84% são homens, 65% têm entre 26 e 55 anos, 92% têm a educação básica e mais da metade vive só. Ainda em situação de rua, a pesquisa aponta que o número de pessoas vivendo em albergues aumentou 70% de 2000 até hoje. O censo de 2000 apontava 3.693 albergados, enquanto hoje são 6.186.
Atualmente, a cidade tem 6.500 leitos em 33 albergues, número considerado ideal pela Secretaria. A secretária municipal de Assistência Social, Aldaíza Sposati, afirmou em entrevista ao jornal Diário de São Paulo de 06/11/2003, que acredita que “o município não deve ter uma cama para cada morador de rua”. A secretária destacou que o que deve ser feito é a criação de saídas para que eles mudem sua situação. “A solução é o trabalho e a retomada da auto-estima”, disse. Outro ponto levantado por Aldaíza é o de que a maior parte das pessoas que mora nas ruas recusa-se a ir para o albergue.
Quanto à população feminina nas ruas, segundo a pesquisa, entre 2000 e 2003 houve uma queda no número de mulheres que vivem nas ruas, ao mesmo tempo em que aumentou sua presença nos albergues. Para a secretária, as mulheres vão menos para as ruas porque ficam em casa com os filhos. Em 2000, eram 930 mulheres nas ruas e 372 albergadas. Agora, são 648 nas ruas e 767 albergadas.
A pesquisa da Fipe indica ainda que 60,2% dos entrevistados já haviam sofrido algum tipo de violência – 30,6% foram agredidos pelos próprios moradores, 22,8% por transeuntes e 13,3% por policiais. Quanto ao tipo de agressão, 52,2% sofreram espancamento, 29,7% receberam facada, tiro ou pauladas e 26,5% foram vítimas de roubo ou furto.
O ponto central do debate a respeito das pessoas em situação de rua é como fazer com que elas saiam de uma situação de exclusão e consigam recuperar em primeiro lugar a auto-estima, para conseguir lutar na (difícil) busca de um emprego e resgatar sua dignidade. Há nesse percurso uma linha tênue entre gerar dependência (postura assistencialista) e tornar as pessoas autônomas. Este é o diferencial de diversas entidades espalhadas pela cidade de São Paulo, algumas com iniciativas semelhantes e outras originais como a Revista OCAS.

Integrar é preciso
São quase oito e meia da manhã. Muita gente ainda está dormindo, afinal é um domingo e amanheceu com uma garoa que dá aquela vontade de não sair de casa. Mas na frente de uma igreja desativada no bairro da Pompéia, uma fila estende-se a partir da porta. A maior parte das pessoas ali não tem casa. Moram na rua e, na melhor das hipóteses, passaram a noite em um albergue da Prefeitura. Este é um lugar em que nenhum deles tem boas lembranças. “Albergue é terrível”, diz A.D.S., 40, que não gosta de dormir em albergue pois “tem horários fixos e as pessoas tratam mal. Somos obrigados a acordar às cinco e meia da manhã e temos de sair para a rua”.
A.D.S. não quer seu nome divulgado não porque tenha medo, mas sim vergonha da sua situação e do preconceito. Veio de Brotas, na Bahia em 1985, na busca de uma vida melhor. Trabalhou como garçom, em bancos, contrariando outras histórias de vida daqueles que migram para São Paulo. Faz seis meses que freqüenta diariamente o Projeto Integrarte, trabalho conveniado com a Prefeitura Municipal de São Paulo.
“Sopão” – Nove anos atrás, um grupo de pessoas que freqüentavam uma igreja no bairro da Pompéia sentiu o desejo de ajudar de alguma forma pessoas carentes da região. Passaram a fazer um trabalho conhecido como “sopão”. Uma ou duas vezes por semana o grupo ia com um carro e distribuía uma sopa, que era servida em caixas de leite longa vida embaixo do viaduto Pompéia. Com o passar do tempo o grupo percebeu que alimentava os corpos daquelas pessoas, porém elas continuavam da mesma forma semana após semana. Continuavam sujas, sem a mínima higiene e sem motivação alguma. Então resolveram levar as pessoas para a igreja (Igreja Evangélica Projeto Raízes), onde podiam desfrutar de um banho, refeição e troca de roupa, além de contar com serviço médico, odontológico e psicológico, ofertado por profissionais liberais voluntários. Eram cerca de 40 voluntários servindo mais ou menos 15 pessoas.
Como o grupo atendido cresceu muito, o espaço provisório tornou-se inadequado e em 1996 foi inaugurada a nova sede, com instalações e recursos mais adequados para um melhor atendimento, que continuava sendo feito das 13 às 22 horas. “Havia pouco tempo útil para trabalhar com as pessoas, muitas delas chegavam alcoolizadas”, nos conta Rita de Cássia dos Anjos Ono, 43, coordenadora do Projeto. Então se decidiu mudar o horário de atendimento, passando a atender a partir das 8 horas da manhã. Essa mudança, porém, trouxe um inconveniente: os profissionais liberais voluntários deixaram de prestar assistência, devido à incompatibilidade de horário. Mas o benefício valeu a pena, uma vez que durante a noite havia dificuldade para encaminhamento médico, para providenciar documentos, etc. O resultado foi o crescimento do grupo atendido, que hoje gira em torno de 120, que ali encontram alimentação, banho e vestuário; acompanhamento psicológico; grupo de convivência (música, artesanato e teatro espontâneo); encaminhamento para cursos profissionalizantes e frentes de trabalho; auxílio na obtenção e guarda de documentos; encaminhamento para albergues; acompanhamento em hospitais e postos de saúde; assistência jurídica e terapia ocupacional.
“A cocaína me levou para a rua” – A história de A.D.S. só assemelha-se a dos outros que estão ao seu lado pois uma das coisas que o levou para a rua foi o vício. No seu caso, a cocaína trouxe, além do vício, o vírus HIV. A vergonha o fez pedir demissão do emprego. Todo o dinheiro que conseguiu com os direitos trabalhistas gastou com droga e álcool. A vergonha também o fez se afastar da família e dos amigos e por sua vez a doença fez a família e os amigos afastarem-se dele. Hoje não quer encontrar nenhum deles. O final foi a solidão e a rua. Como o dinheiro acabou, passou somente a beber. Comprava por pouco menos de um real a “barrigudinha”, famosa entre a população de rua. Trata-se, segundo ele, de ”uma garrafa de meio litro de cachaça sabe-se lá feita de quê, pura e forte”, vendida nos mercadinhos.
A.D.S. gosta do Projeto Integrarte, pois fica “mais escondido”, ao contrário de outros trabalhos do gênero. Acredita que não vai conseguir outro emprego, mas com uma indenização que pleiteia no INSS, pretende voltar para sua terra natal, “para morrer por lá”. No Integrarte, aqueles que chegam pela manhã podem tomar um banho, fazer a higiene pessoal, lavar a roupa e também entreter-se com uma televisão, jogos de mesa e leitura. Tomar banho e fazer a barba ajuda a diminuir o preconceito das pessoas na rua. “Quando alguém está mal vestido, com a barba por fazer e sujo, as pessoas se afastam”, diz A.D.S, “mas com a barba feita e roupa melhor, as pessoas ajudam mais”.
Em um tempo em que muito se fala sobre Responsabilidade Social, os trabalhos com pessoas em situação de rua não são beneficiados pela onda politicamente correta. “É difícil empresas quererem ajudar o morador de rua. São vistas como pessoas que não deram certo”, afirma Maria Diva Oda Joaquim, 44, também à frente do Projeto Integrarte. Diva e Rita são unânimes em constatar que as pessoas em situação de rua não são alcançadas pelos projetos de Marketing das empresas, que orientam sua atuação para áreas como ecologia ou trabalho com crianças, que trazem um maior retorno. “Ultimamente as doações das empresas diminuíram muito. Mas aquelas que tem doado são empresas que não estão preocupadas em fazer propaganda”, diz Rita.
Um dado interessante é a mudança no perfil da pessoa em situação de rua. Segundo Rita, “antes era o mendigo, sujo, maltrapilho. Hoje esse tipo de população está mais apresentável”, um aspecto que se deve talvez ao fato de que muitas dessas pessoas têm conseguido obter uma pequena renda através da coleta de material reciclável.
Hoje a Prefeitura é responsável por 85% da receita do Integrarte e os outros 15% restantes são provisionados pela Igreja, sendo que uma pequena parcela vem de doações espontâneas. Outra parceria é feita com Postos de Saúde da região, difundido programas de detecção e prevenção de tuberculose e do vírus HIV, além da distribuição de preservativos. Há também um trabalho com dependentes químicos.
Um fato que é observado no trabalho realizado é o aumento do número de idosos que freqüentam o local. Tal fato se deve ao baixo rendimento – alguns são aposentados e recebem apenas um salário mínimo. O dinheiro tem que ser destinado para conseguir um lugar para morar ou para comer. Então eles alugam um local e alimentam-se no Integrarte.
Rita e Diva acreditam que há uma visão equivocada do trabalho com a população de rua. “Muitos acreditam que o problema principal é o desemprego”, diz Rita. Mas, segundo ela, a pessoa que está na rua geralmente já passou por um processo de profunda depressão, dependência química e perda dos vínculos afetivos. Desta forma o primeiro passo para melhorar a situação destas pessoas é recuperar sua auto-estima. Os números refletem que o índice de recuperação é baixo, então o que motiva alguém a trabalhar por estas pessoas? Rita conclui que “com o tempo conseguiu descobrir que há níveis de recuperação. Ou seja, é uma vitória quando uma pessoa suja e maltrapilha passa a querer tomar banho, preocupa-se em alimentar-se, consegue conviver socialmente e pede tratamento. Mas o máximo da recuperação é que a pessoa consiga retomar a vida, ter um emprego, família”. Diva complementa, afirmando que “uma coisa é vir uma vez por semana, como fazem as pessoas que querem ser voluntários. Outra é conviver com esta realidade todo dia. Em primeiro lugar é preciso enxergar as pessoas em situação de rua como iguais. E também é necessário ter amor pelo trabalho. Ninguém que trabalha por obrigação consegue agüentar muito tempo, além de fazer um trabalho ineficiente”.
O Projeto Integrarte fica na Rua Mundo Novo, 94 - Pompéia e contatos podem ser feitos pelo telefone 3675.1758. Na Internet, confira o site a Associação Projeto Raízes, mantenedora do Projeto Integrarte. Confira, abaixo, um vídeo institucional:


Minha Rua, Minha Casa
A Liberdade está ao lado. Mas ao mesmo tempo, muito distante da vida destas pessoas. Liberdade com “L” maiúsculo, pois se trata de um bairro da cidade de São Paulo. O bairro ao lado é o Glicério. Desapercebido dos olhares e do conhecimento de muitos que passam por ali diariamente com seus automóveis, embaixo do viaduto do Glicério, Rosana Baêsso, 38 anos, é uma das coordenadoras e está de “segunda a segunda” trabalhando com as pessoas em situação de rua. A Associação Minha Rua Minha Casa nasceu a partir de um trabalho realizado pelas irmãs obratas, que em 1978 passaram a auxiliar as pessoas que se reuniam embaixo do viaduto para compartilharem alimento, no caso, sopa. As irmãs inicialmente acompanhavam o movimento, que nasceu das ruas. Com o tempo passaram a desenvolver trabalhos, através da Organização de Auxílio Fraterno (OAF), que atua desde 1955 em favor da população adulta de rua.
Francisco Chagas Vieira tem 31 anos e já está em uma fase melhor de vida. Participa de um Grupo de Geração de Renda, recebendo uma “bolsa” para pagar o aluguel em uma moradia provisória. Este programa do governo dá um tempo de 6 meses a 1 ano e 2 meses para a pessoa reestruturar sua vida e conseguir estabelecer-se em um lugar melhor. Francisco passou dois anos morando em albergue, mas lá “não conseguia um emprego, pois ninguém dá emprego para quem mora em albergue”. Veio de Campina Grande, Paraíba, em 1988, trabalhou como porteiro, pedreiro, eletricista, “um pouco de tudo”. “Até os 26 anos tudo ia bem”, diz Francisco, “mas acabei me envolvendo com drogas, bebidas, mulher”. Com isso teve de abandonar o lar, sua mulher, uma filha de dez anos e a casa de três cômodos que tinha em Carapicuíba. Francisco lembra que “só queria saber de forró” e depois de um ano envolvido com drogas, perdeu o emprego e em 1999 foi parar na rua, onde ficou pouco tempo, pois passou a freqüentar os albergues – passou por vários – da Prefeitura.
Francisco chegou a morar um tempo com o irmão, mas a convivência com a família do irmão ficou muito difícil “por causa do álcool”. O trabalho no Minha Rua, Minha Casa o tirou do álcool e agora anda “de cabeça erguida”. “Quero arrumar uma casa, sair da moradia provisória, e arrumar um bom emprego”, afirma ele, que é um associado do trabalho, auxiliando nas tarefas do dia-a-dia.
As dificuldades de Francisco e tantos outros são muitas, como também do Minha Rua, Minha Casa. Na gestão do prefeito Jânio Quadros tentou-se fechar a região embaixo do viaduto, mas foi impossível paralisar o trabalho. Em 1994 o projeto passou a tomar forma, com a construção de um Centro de Convivência no mesmo local, contando para isso com a ajuda de empresários, que ofereceram uma proposta de parceria para trabalho conjunto, a partir do Pensamento Nacional das Bases Empresariais (PNBE). O trabalho oferece acompanhamento psicológico, cuidados pessoais, prevenção do uso de álcool e drogas, alimentação, atividades culturais e sócio-educativas, contando com a ajuda de uma equipe técnica de 9 educadores e cerca de 40 voluntários, que prestam serviços duas vezes por semana. O local não dispõe de albergue e tem uma cooperativa de reciclagem e aproveitamento de móveis usados.
Fala Cidadão – Um diferencial é uma “rádio” montada no local e operada pelas próprias pessoas que são atendidas ali. A “Rádio Fala Cidadão” funciona com uma caixa de som que leva ao ar, às quartas-feiras e sábados, uma programação variada. Antonio Andrelino Soares Neto, 30 anos, é “locutor” da rádio há cerca de um mês. Neste sábado a rádio tinha em sua programação: “Tardes Paulistanas”, das 14h às 14h30; “Nordeste Caboclo”, das 14h30 às 15h; “Black Love”, das 15h às 15h30; e “Diversidades Musicais”, das 15h30 às 16h. Uma mesa de oito canais, um microfone em situação precária, um toca-discos (quebrado) e um discman fazem de Andrelino locutor por meia-hora. “No começo ficava com vergonha, mas com o tempo a gente vai se soltando”, diz Andrelino, depois de completar sua tarefa e fechar a “rádio”. Os equipamentos foram doados em julho de 2002 e, com o tempo, as pessoas foram mobilizadas no sentido de formar a rádio, um movimento inverso das atividades da Associação, que procura atender às iniciativas das pessoas.
Rosana está envolvida com o Minha Rua Minha Casa há dez anos. Foi bancária e sempre esteve envolvida com projetos sociais, o que a fez optar pelo curso de Serviço Social. Trocou o Banco pelas ruas. Acredita que o governo tem participado na formulação de projetos. “A primeira gestão que se preocupou com as pessoas em situação de rua foi a da prefeita Erundina”, informa Rosana. “Foi feito o primeiro censo e o desenvolvimento das casas de convivência”, continua ela, destacando a principal divergência no foco dado pelos governos: a questão da “dependência ou autonomia”, que poderia ser resumida em “dar o peixe ou ensinar a pescar”. Rosana destaca, porém, que o índice de pessoas que deixam as ruas e retomam a sua vida é muito pequeno.
Entre os principais problemas enfrentados pela Associação, que tem capacidade para receber 350 pessoas durante o dia, está o excesso de barulho produzido pelos veículos. Segundo Rosana, não há perspectiva de mudanças, mas sim para um melhor isolamento acústico do local. Com ou sem barulho, ali as pessoas encontram pessoas interessadas no convívio e não no assistencialismo. Quem chega ali pode tomar um banho, ler uma revista, utilizar uma área de recreação, com mesa de ping-pong, jogos de mesa, além de alimentar-se, sempre em esquema de mutirão, com a participação de funcionários, voluntários e a própria população de rua.
O espaço que foi cedido em comodato pela Prefeitura Municipal de São Paulo fica na rua Dr. Lund, 361 (embaixo do viaduto Glicério) e o telefone para contato é o 3271-8718. O escritório da associação fica na rua Major Quedinho, 111 - 21° andar (telefones: 3255.7264 e 3231.5204). Na Internet, acesse: http://www.minharuaminhacasa.hpg.ig.com.br.

Revista OCAS
A revista é uma iniciativa diferenciada na finalidade de inclusão social das pessoas em situação de rua. É uma publicação mensal, com temas culturais, políticos e sociais. A venda é feita exclusivamente nas ruas, por populações sem moradia ou que vivem em condições precárias. Os vendedores recebem uma credencial, uma área de venda e exemplares gratuitos para iniciar o trabalho. Depois, compram cada exemplar por 25% do valor de capa e ficam os 75% restantes. Atualmente a publicação é vendida por R$ 2,00, e desta forma R$ 1,50 fica com o vendedor.
O nome da revista vem da sigla de Organização Civil de Ação Social e foi fundada em 21 de abril de 2001. Além da revista, acompanha o trabalho dos vendedores e busca parecerias para prestação de serviços habitacionais, educacionais e de saúde aos participantes do projeto. A experiência é similar às ocorridas no exterior, onde mais de 40 publicações são filiadas à INSP (International Network of Street Papers - Rede Internacional de Publicações de Rua).
O centro de distribuição em São Paulo fica na rua Campos Sales, 86 – Brás (Tel 3208.6169). A sede fica na rua Sampaio Moreira, 110 – casa 9 – Brás (Tel 3311.6642). Internet: www.ocas.org.br.

De oficina de ônibus para “oficina” de vidas
Duas da tarde. A chuva cai torrencialmente em uma tarde de sábado e 45 pessoas estão em uma sala de cinema assistindo ao filme “Equilíbrio”. Alguns, atrasados, ficam de fora e pegam uma senha para assistir “Passageiro 57”, na próxima sessão. Parece uma cena banal do cotidiano, não fosse o local ser o “Cine Boracea”, dentro de um complexo de 17 mil metros quadrados, inaugurado em junho de 2003 na Barra Funda. Com capacidade para abrigar mais de 400 pessoas, faz parte do Projeto Boracea, idealizado para “carrinheiros” (catadores de papel e recicláveis), dispondo inclusive de um organizado estacionamento para carrinhos e canil para cachorros.
É um empreendimento polêmico, na opinião daqueles que trabalham em outras instituições que visam as pessoas em situação de rua que consideram o Boracea muito grande, dificultando o convívio, o relacionamento. O local do projeto era uma antiga oficina da CMTC (antiga companhia municipal de transporte coletivo) e permaneceu com o nome, que significa “alegria”, além de ser o nome da rua que fica atrás do terreno.
Apesar das críticas, é com um sorriso nos lábios e um olhar de sincera felicidade que Reginaldo Ferreira Batista, 46 anos, conta da mudança em sua vida de sete meses para cá, graças ao Projeto Boracea, segundo ele “o melhor projeto do Brasil”. Sua primeira mudança foi da Bahia para São Paulo, 34 anos atrás. A segunda foi ao chegar o Boracea. Na primeira, as coisas não deram tão certo como imaginava. Reginaldo é catador de papel e percorre as ruas do centro de São Paulo. Vivia na rua, brigava, drogava-se, bebia muito. Classifica sua vida anterior com “podridão”. Não dormia em albergue, pois acha que “albergue é lugar para maloqueiro”. Morou em quartinho, favela, mas nunca pediu ajuda nem para assistente social. Mas foi justamente uma assistente social, através do padre da Igreja São Francisco, quem informou Reginaldo do Projeto Boracea, fazendo com que ele deixasse de viver embaixo do “Minhocão” e, com o passar do tempo, deixasse as drogas, a cachaça e parasse de brigar.
Reginaldo trabalha na região central e pode vender o produto que recolhe no próprio Projeto. Só essa semana iria tirar “uns R$ 150,00”, disse ele, mostrando os “vales” que guardava depois de pesar o material que trouxe. Com o dinheiro, quer abrir uma conta no banco, mas está esperando chegar sua certidão de nascimento da Bahia, para tirar os documentos, uma vez que todos que tinha foram roubados. “Mas vou esperar mais uns quinze dias para tirar o RG”, diz Reginaldo. Para que esperar? “Quero tirar assinando meu nome, não vai ser mais com os cinco dedos”, responde ele, feliz por estar aprendendo a escrever e a ler, em uma das classes do Boracea. Um dos parceiros na área de alfabetização é a faculdade Uninove.
Para Reginaldo, além da oportunidade de fazer dinheiro, um lugar para tomar banho, o Boracea “é um divertimento. Tem cinema, sala de TV, jogos, aulas de artes”. Para não perder isso tudo, é só seguir as regras determinadas quando a pessoa cadastra-se no Projeto, entre elas “não furtar, não brigar, não falar palavrão, não desacatar as autoridades”, e, segundo ele, quem faz estas coisas “não é humilde, não quer fazer parte da família que se forma [no Projeto]”.
Antes, não tinha perspectiva de futuro. “Só vivia com maloqueiro, bebendo, sem tomar banho, uma podridão. Hoje não consigo passar perto deste tipo de pessoa na rua, me sinto mal”, afirma ele. No Boracea, ele pode tomar café da manhã e jantar gratuitos e almoçar, pagando R$ 0,50. Para quem não é associado, o restaurante é aberto, cobrando R$ 1,00 pelo prato. As refeições passam pelo crivo de uma nutricionista.
Enquanto isso, a sessão do cinema já começou e as pessoas estão em silêncio, atentas ao filme. Há até um “lanterninha”, Luiz Lorenzo Del Pino Concha, de 36 anos. Luiz é chileno e trabalha há dois meses no Oficina Boracea, como educador sendo funcionário da Associação Evangélica Brasileira (AEB), parceira da Prefeitura no trabalho. “Procuramos ocupar as pessoas, para recuperá-las, tentando resgatar a auto-estima, despertar algum talento, como música, artes”, nos conta Luiz, que trabalha das 13 às 22 horas, cinco dias por semana, com uma folga durante a semana e um dia no final de semana. A AEB é uma das ONGs que trabalham no Boracea, e participa com dez funcionários. Luiz também dá aulas de espanhol, sendo que o Projeto oferece também aulas de inglês, pintura, desenho, bonecos, entre outras.
Luiz conta que por ali passam “todo tipo de pessoas, há idosos abandonados pela família e muitas pessoas legais e simpáticas”. Ele abandonou seu emprego como analista contábil para encarar o desafio de trabalhar inclusive “com pessoas que tem dificuldade em serem ajudadas, mas temos de procurar o que a pessoa tem de melhor e ressaltar. Nossa missão é educar”, afirma.
Nos primeiros dias, Luiz sentiu um choque, devido à dificuldade em “lidar com pessoas alcoolizadas, pessoas que não primam pela higiene e não descriminá-los, dar a mesma atenção a todos”.
Embora ligado a uma associação religiosa, Luiz afirma não ter uma religião, mas acredita em Deus. Destaca que não há ênfase em ensino religioso, mas sim a preocupação na recuperação das pessoas.
Outra parceria no projeto foi firmado com a UNISA (Universidade Santo Amaro), através de professores e estagiários em Veterinária, que trabalham na manutenção do canil. Segundo Maria Madalena Alves, 61, coordenadora do Boracea, não há uma estrutura para voluntários. Há a busca de profissionalização do serviço. São 180 funcionários, sendo 63 da Prefeitura e os demais das organizações que trabalham com áreas específicas, como idosos, artes, albergue, etc. “Se fosse uma única equipe para cuidar de tudo, algo poderia escapar. Como há várias equipes tratando de áreas específicas, o trabalho torna-se mais produtivo”, afirma Madalena.
Para a efetivação do projeto, empresas foram procuradas pela Prefeitura e atualmente há a Associação amigos do Boracea. Esta associação tem como objetivo apoiar financeiramente, inclusive captando apoio junto a outros empresários. Além do apoio financeiro, há outras formas dos empresários auxiliarem. Por exemplo, a Estapar fez o planejamento do estacionamento para os carrinhos.
Madalena afirma que cerca de 40 pessoas por mês deixam o projeto “com a vida resolvida”.
O Projeto Oficina Boracea fica na rua Norma Pieruceno Gianotti, 77, na Barra Funda.

Médicos Sem Fronteiras (RJ)
Na tentativa de melhorar a situação dessas pessoas, MSF deu início, em 2000, ao Projeto Meio-fio, que oferece assistência médica, social e psicológica a moradores de rua do centro do Rio de Janeiro. O acesso à saúde é garantido pela Constituição Brasileira; porém, devido à falta de documentos, falta de residência e/ou preconceito, os moradores de rua, muitas vezes, não são propriamente assistidos.
A ação de MSF se dá através de uma equipe multidisciplinar – entre os quais se encontram enfermeiros, médicos, assistentes sociais, psicólogos e educadores – diretamente envolvida com a realidade dos moradores de rua. O trabalho começa com a abordagem dos beneficiários na própria rua. A equipe do projeto avalia suas condições gerais de saúde, presta assistência primária e, dependendo do caso, encaminha-os para o sistema público de saúde. A idéia, entretanto, é que a abordagem também possa dar início a uma análise mais profunda e um levantamento de dados acerca da situação social e de saúde desses indivíduos. O cadastramento dos usuários do projeto possibilita a estruturação de um banco de dados. Munidos de informações específicas sobre o grupo – tais como o grau de escolaridade média, os motivos de ida para a rua, vínculos familiares, fontes de renda, anseios, etc. –, a equipe pode identificar as demandas das pessoas em situação de rua. Saiba mais em: http://www.msf.org.br.


O que diz a Lei
Segundo o Plano Diretor de Políticas Públicas da Prefeitura Municipal de São Paulo, Capítulo II, Seção V - Da Assistência Social, em seu parágrafo 5º, “são ações estratégicas relativas à população em situação de rua:
I - promover ações e desenvolver programas multisetoriais direcionados ao atendimento da população em situação de rua;
II - implantar unidades de atendimento desse segmento populacional;
III - promover o acesso da população em situação de rua a programas de formação, projetos de geração de renda, cooperativas e sistemas de financiamento;
IV - promover o acesso da pessoa em situação de rua que tenha retornado ao trabalho e se encontre em processo de reinserção social a projetos habitacionais desenvolvidos pelo Poder Público".
Como já informado, o número de leitos nos albergues seria suficiente para abrigar mais da metade da população em situação de rua, porém nem todas as vagas são preenchidas. Alguns dos fatores que afastam as pessoas destes locais são: a obrigação a seguir horário fixo, tomar banho, trocar de roupa e não beber.
Para melhorar o atendimento, a Secretaria Municipal de Assistência Social criou em junho de 2003 o Conselho de Monitoramento da População em Situação de Rua, com 19 membros, entre representantes do fórum de ONGs que trabalham com população de rua, de empresas de responsabilidade social, das secretarias do Trabalho, da Assistência Social, da Saúde e da Habitação, além de três usuários dos serviços.

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