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(Sem) Juízo

Segunda-feira assisti a pré-estréia do documentário Juízo, da diretora Maria Augusta Ramos. Três anos depois de inovar nas telas com Justiça (2004), que retratou o sistema judiciário brasileiro de uma forma jamais vista, a cineasta volta ao "teatro da Justiça" e agora fixa suas lentes na 2ª Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro. Novamente os protagonistas são os juízes, promotores e defensores. Só os acusados mudam. Ao invés de homens e mulheres, agora o foco são adolescentes infratores.
A lei brasileira não permite que infratores com menos de 18 anos sejam identificados, o que criaria uma grande barreira para execução do filme. Mas a diretora conseguiu uma solução brilhante. Duas câmeras no fundo da sala de audiências captaram a íntegra dos interrogatórios e tomadas de depoimentos de testemunhas. Uma das câmeras registrou juízes e promotores. Outra, registrou a defesa e familiares presentes na sala. Sempre com os adolescentes de costas. Mas, para dar rosto ao filme, Maria Augusta recrutou adolescentes de comunidades cariocas (não atores), com idade e aparência física similar aos infratores, que reproduziram as falas destes em uma gravação posterior, de frente. A edição foi muito bem realizada e o resultado traduz fielmente as audiências. Com isso, o filme perde sua característica documental? Para a diretora, não. Ela considera Juízo um "filme híbrido". A proposta foi filmar as audiências reais, da forma como elas são realizadas diariamente. Não houve simulação, texto, repetições, nem representação (embora, quem não altere, ao menos um pouco, sua postura quando está frente às câmeras?).
Além de filmar as audiências, Juízo também abre as portas do Instituto Padre Severino (foto ao lado, em cena do filme), uma unidade de internação provisória, sob a responsabilidade do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase) que é uma verdadeira prisão para onde são levados os infratores. Ressocialização = Zero.
Embora o documentário anterior - Justiça - apresente nas entrelinhas uma crítica ao sistema judiciário e carcerário brasileiro, atingiu ótima aceitação no meio, como prova, por exemplo, um artigo do sítio Consultor Jurídico (07/07/2004). Outros setores também entenderam a mensagem do filme, como escreve o lingüista Ivan Leischsenring.

Debate
Após a pré-estréia do filme, no Espaço Unibanco (SP), houve um debate com a participação da diretora, Maria Augusta; do presidente da OAB/SP, Luiz Flávio Borges D'Urso - que mediou o debate; do presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/SP, Ricardo Cabezón; do juiz da Infância e Juventude (SP) Sérgio Mazina Martins (que também é professor de Direito Penal, membro da AJD - Associação Juízes para a Democracia e 1º Vice-Presidente do IBCCrim - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais); e da juíza Luciana Fiala de Siqueira Carvalho, que na época das filmagens era juíza auxiliar da 2ª Vara da Criança e do Adolescente, do Rio de Janeiro.

O lado dos defensores
Para D'Urso, o filme mostra, com sensibilidade, que "uma mudança é necessária". Mas reafirma a posição da OAB paulista, totalmente contrária às propostas para redução da maioridade penal. Já Cabezón destacou a questão da eficácia das chamadas medidas sócio-educativas e considera que Juízo deixa duas perguntas no ar: "O que está havendo com as crianças?" e "O que está havendo com os centros de ressocialização?".

O lado dos julgadores
A juíza dura na queda - Desde os primeiros minutos do filme, até a última cena, destaca-se a figura da juíza Luciana Fiala (foto ao lado, em cena do filme). Sua fala é ligeira, sua linguagem tenta aproximar-se da linguagem do jovem carioca, seu tom é de repreensão, quase como um pai ou mãe severos disciplinando um filho.
Alguém que desconhece o dia-a-dia de uma sala de audiências talvez estranhe, mas a velocidade é inevitável em um dia de trabalho com 40 ou 50 audiências em pauta. Em meio às falas do filme, ao ser indagada pelo defensor que o infrator sofreria mais em uma instituição que não tem as mínimas condições de ressocialização, Luciana afirma que sua obrigação é "cumprir a parte do Judiciário" e, se o Executivo não tem condições de fazer a parte dele, ela, como juíza, não pode se eximir de fazer a dela.
Durante o debate, a juíza revelou sua responsabilidade ao lidar com "um ser em formação", mas geralmente tem à sua frente adolescentes "sem objetivos ou perspectivas". Em sua função, afirma que sempre tenta "delimitar o campo do bem e do mal, para tentar atrair o jovem para o lado do bem". Mas, admite que o caminho para que a sociedade, conjuntamente, chegue a um ponto comum, "é longo" e, por enquanto, a sociedade "está perdendo os jovens para a criminalidade".
A magistrada é sincera, ao admitir que os juízes não têm formação adequada para lidar com situações na área psicológica ou de assistência social, quando tratam deste tipo de infratores. "O concurso [para ingresso na magistratura] é teórico e [para atuar no dia-a-dia] é preciso agir com o instinto". Mesmo com as dificuldades enfrentadas, a juíza revela uma razão para trabalhar com empenho: "Nasci para isso. É isso que eu gosto de fazer".
"Todos nós fomos filmados" - O juiz Sérgio Mazina também chama a atenção para o despreparo do sistema de justiça para lidar com esse tipo de situação. Para ele, desde os funcionários do sistema prisional, passando pelos advogados, promotores e juízes, ninguém tem "uma cartilha para lidar com a população desse país" o que faz, por exemplo, com que os adolescentes sejam interrogados "com uma linguagem técnica, a linguagem do Direito", comum na figura clássica do juiz: "A gente simplesmente manda, determina, para apenas elucidar o fato", ao invés de "conversar com o adolescente". O resultado, hoje, é o que ele chama de "genocídio da adolescência mais carente".
Mazina afirma que em Juízo "todos nós fomos filmados", mas adverte que "o problema maior são os adultos [nós] por trás desses adolescentes infratores. São adultos que não sabem lidar, julgar, defender e prender esse adolescente". Depois do julgamento, os problemas do jovem infrator só aumentam, já que, para Mazina, "nenhum sistema prisional no mundo ressocializou ou educou alguém" e uma mudança só ocorrerá quando "o sistema entender os complexos sistemas históricos e sociais de cada infrator".

Ânimos exaltados
A diretora, Maria Augusta Ramos, falou pouco no momento destinado a ela. Porém, sua posição é clara em uma entrevista para o portal G1, quando afirmou que "a solução é fazer com que eles [adolescentes infratores] não cheguem ali [no Poder Judiciário]". Ao invés de debater, a cineasta preferiu abrir para as perguntas do público. O "tripé" da Justiça (acusação, defesa e juízo) não foi completo na mesa de debates, já que nenhum promotor de Justiça foi convidado para participar.
As manifestações do público, formado por magistrados, advogados, alunos de cursos de Direito, funcionários do Tribunal de Justiça e pelo público em geral, começaram tímidas, mas na medida em que opiniões foram colocadas, os ânimos começaram a se exaltar. Principalmente quando o juiz Eduardo Rezende Melo, da 1ª Vara da Infância e Juventude de São Caetano do Sul, questionou o direito da juíza Luciana, baseado no documentário, "dar um pito" nos jovens infratores. Ele também estranhou o fato de, aparentemente, não ser apresentado aos jovens os seus direitos, como o de permanecer em silêncio. Rezende Melo é conhecido por coordenar, desde 2005, um projeto de justiça restaurativa em escolas públicas de São Caetano do Sul (ABC paulista) e, ao abordar em sua fala a necessidade da implantação de um modelo restaurativo, foi aplaudido por uma grande parte da platéia.
Luciana Fiala rebateu a crítica e esclareceu que cumpria os ritos processuais durante o interrogatório, ficando claro que tais falas não foram para o filme devido ao processo de edição e corte necessários para realização de uma obra cinematográfica. Porém, Luciana reafirmou que não representou um papel, aquilo não foi uma atuação. A imagem que o espectador tem ao assistir o filme é como ela é no seu cotidiano, é assim que ela acredita que seu trabalho deve ser feito e ela continuará tratando os jovens infratores da mesma forma.
Antes das considerações finais de cada um dos participantes, já próximo da meia-noite, o mediador concedeu uma última palavra à juíza paulista Kenarik Boujikian Felippe (também membro do AJD), que deixou claro que o tempo era curto para um assunto tão amplo, que merece ser discutido e medidas precisam ser implementadas.

Opinião
Acredito que apenas um lado do filme não foi colocado em discussão. Talvez pelo tempo escasso, que impossibilitou, por exemplo, que meu questionamento chegasse à mesa debatedora. Mesmo assim, ao assistir o documentário e conhecendo um pouco dos bastidores do sistema judiciário, uma coisa destaca-se para mim: existe defesa e "defesa". Muito embora haja defensores públicos que se esmeram em sua função, é uma situação complicada para a defesa ser apresentada ao seu "cliente" apenas na hora da audiência, momento em que terá acesso aos autos e geralmente sem condições para uma entrevista reservada com o acusado. Claro que isso é para aqueles que não têm condições de contratar um advogado.
Fico pensando se grandes escritórios ou brilhantes advogados criminalistas doassem um dia por mês de seus trabalhos para atuarem - da mesma forma que defendem seus clientes pagos - quais seriam os resultados. Pode ser um devaneio, mas acredito que o teste seria interessante.
Claro que a questão da fraca defesa não exime a sociedade e o Estado de seus papéis. Como afirmou Maria Augusta Ramos, melhor seria que os jovens não infringissem a lei e chegassem, dessa forma, ao Judiciário. Mas, chegando, seria justo que o princípio da igualdade de direitos (e de defesa) fosse uma realidade.
Ou seja, o problema não é simples. Há todo um contexto social, econômico, educacional e familiar a ser sanado. E não são necessárias pesquisas ou debates para constatar que investimentos na área de educação e uma política que diminua a grande desigualdade social são os principais alicerces para formar uma sociedade mais equilibrada e pacífica.

A partir de sexta-feira (14/03) nos cinemas

(Se tiver problemas para assistir, clique aqui)

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Um texto importante para refletir sobre a questão da violência é Violência e Agressão, do Frei Betto. Não deixe de ler.

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3 Opiniões:

Anônimo disse...
23/11/11 9:01 PM

Simplista...

Fábio [DoxaBrasil] disse...
23/11/11 9:16 PM

O texto, o filme, a juíza, o juizado??? O que vc considerou simplista?

Anônimo disse...
7/1/12 7:28 AM

Os menores que cometeram um crime tem a sua punição clara dita em legislação, não receber humilhação por parte de uma juíza, mas vemos como fraca a defensoria pública, o seu defensor que 'abaixava a cabeça' na hora, a defensoria é assim 'abaixa a cabeça' sempre, um advogado de 'verdade' não deixaria isso acontecer e responderia na hora o dito sermão da auto intitulada 'justiceira' e se achando única seguidora das boas condutas, a justiça no Brasil é só para quem tem bons advogados.


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