Ainda sob efeito do documentário Juízo (que estreou ontem
no Espaço Unibanco de Cinema - SP), selecionei para
hoje um dos textos do Pressbook do filme
no Espaço Unibanco de Cinema - SP), selecionei para
hoje um dos textos do Pressbook do filme
ECA: 18 ANOS
No ano em que o Estatuto da Criança e do Adolescente chega à maioridade, a Juíza Cristiana Cordeiro analisa o que é ser um menor frente à justiça brasileira
Nasci no dia 13 de julho de 1990 sob o olhar atento de todos. Dentre tantas esperanças em mim depositadas, uma das principais dizia respeito ao status que eu passaria a ostentar. Desejavam que fossem abandonadas as anteriores categorizações de menores vadios, libertinos ou em situação irregular, para que crianças e adolescentes passassem a ter reconhecida a sua condição de pessoas humanas em processo de desenvolvimento e sujeitos de direitos civis.
Com o passar dos anos, tenho percebido o enorme abismo que separa o que foi sonhado para mim e a realidade. A prioridade absoluta que eu deveria receber é letra morta, e continuo sendo visto como uma questão de menor importância. Sob o argumento de que me é garantido o direito de ir e vir, me deixaram sozinho, à noite, com fome e frio. Dali para o fumo, a droga, a bebida e o roubo, não custou muito.
Ignoram que quando dois direitos parecem colidir, prevalece o mais relevante, e para mim teria sido tão importante meus direitos à vida, à saúde, à educação, à convivência familiar.
Não demorou muito, “rodei”. No dia em que fui preso, tinha acordado com fome de liberdade. Pensei numa moto bem bonita, com o vento batendo no meu rosto. Cheguei a levar um tiro do homem que eu assaltei. Na delegacia, fiquei 24 horas sem beber ou comer e minha família demorou a saber o que tinha acontecido. Durante dois dias, um dos outros 70 presos que estavam na mesma cela me ajudou com meus ferimentos. Soube de uma adolescente no Pará – também indevidamente colocada na companhia de presos adultos – que recebeu dos colegas tratamento de natureza bem diversa.
Saí da delegacia para conversar com um rapaz muito novo, de terno e óculos, que vim a saber ser o promotor de justiça. Fiquei um pouco surpreso com as suas perguntas, mas entendi melhor quando soube que, na faculdade, ele não estudou nada sobre direitos de crianças e adolescentes. Ele pediu minha internação provisória e saí dali para o Instituto Padre Severino, onde passei 45 dias sendo chamado de demônio, levando tapas nas orelhas, comendo com colher. Dividi um beliche sem colchão com um colega muito assustado, que vinha do interior do estado porque tinha roubado uma galinha. Não recebi visita. Minha família não teria o dinheiro das passagens.
No dia em que fui levado ao Juiz, tomei banho e vesti uma roupa limpa. O Juiz também era jovem como o promotor. Ele leu uns papéis que eu não entendi muito bem, mas que deviam ser como o promotor contou a história do roubo da moto, na língua dele. O Juiz apontava para mim e para minha mãe e perguntava se eu não tinha vergonha de decepcioná-la. Fiquei tentando imaginar que técnica de abordagem era aquela, mas logo me lembrei que o Juiz fez aquela mesma faculdade, onde nada estudou sobre mim. Tive certa compaixão por aquela gente sem noção exata do que estava fazendo e passei quase toda a audiência pensando que eu poderia estar ali sentado na cadeira do Juiz, se tivesse tido as mesmas chances.
Da sentença que o Juiz me deu, só entendi a parte dos três anos. Eles passaram lenta e dolorosamente, e tanta coisa aconteceu, e tantas histórias ouvi, que quando a porta se abriu e me liberaram (segundo o Juiz, “só mesmo porque o tempo máximo de internação foi atingido”), nem sabia mais quem eu era.
Só que eu era “ex-menor”. Foi assim que o jornal se referiu a mim quando fui preso. Agora, também podem divulgar meu nome.
Chamo-me Estatuto da Criança e do Adolescente.
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A Juíza Cristiana Cordeiro é titular da II Vara Regional da Infância,
da Juventude e do Idoso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
A Juíza Cristiana Cordeiro é titular da II Vara Regional da Infância,
da Juventude e do Idoso do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Retratos & Reflexos
A fotografia de hoje foi tirada um tempo atrás, na entrada do Projeto Oficina Boracea, um local que tenta tratar com um pouco de dignidade as pessoas em situação de rua.
Um homem. Sua carroça. Seu [único] companheiro.
1 Opiniões:
Não sei se causarei espanto, mas o ECA, na prática, lançou os seus protagonistas (crianças e adolescentes) no mundo do crime.
O ser humano tem grandes dificuldades, em muitas áreas, mas nada supera sua mais completa falta de afinidade para com o ato de elaborar leis. Vide o Papa.
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