Em inglês, pode-se traduzir a palavra inocente por: innocent; free from sin or wrongdoing; pure; entre outros. O interessante é que, juridicamente o termo é not guilty - você já deve ter escutado em filmes -, algo como "não culpado" e não, como utilizamos em português, inocente. Guilty é, então, aquele que deve ser punido, aquele que tem culpa.
Explico a seção "the book is on the table". Esta semana pensei sobre a questão da presunção de inocência, levantada pelo advogado Luiz Eduardo Greenhalgh em relação ao caso do Padre Julio Lancellotti. Em entrevista para a Rede Globo (reproduzida na imprensa escrita), Greenhalgh afirmou: "Temos que pesar se vamos dar guarida à palavra de um bandido ou à palavra do padre Júlio. Eu quero se que presuma a inocência do padre, porque foi ele que denunciou a armação".
O princípio da presunção de inocência é uma garantia constitucional (artigo 5º, inciso LVII). A partir dela não se pode fazer o lançamento do nome de um réu no rol dos culpados, antes do trânsito em julgado da decisão condenatória. Ou seja, na Constituição brasileira não se afirma expressamente que todos são inocentes até que se prove o contrário, mas sim que ninguém será considerado culpado daquele crime até o fim do processo, que é o princícipio da desconsideração prévia da culpabilidade. A diferença é sutil, mas existe.
Por outro lado, embora não esteja nas letras jurídicas, entendo que também há a presunção da culpa, a partir da argüição de Greenhalgh, pois o "bandido" seria culpado (de qualquer crime), até que se prove a sua inocência. Claro que minha intenção aqui não defender ou julgar nehunhum dos lados, nem fazer juízo de valor da situação, mas tentar analisar um pouco como a imprensa lida com estas situações. É inevitável retornar para um caso emblemático, como o da Escola Base, que marcou a história do jornalismo brasileiro. Em dezembro de 96, o governo do Estado de São Paulo foi condenado a pagar uma indenização por danos morais no valor de cem salários mínimos aos donos da escola e a um colaborador envolvida. Esta prevista uma perícia para avaliar os prejuízos materiais das vítimas. O jornalista Alex Ribeiro escreveu um livro interessante sobre o caso e o site do Instituto Gutenberg resume bem o acontecido, para quem não se recorda dos detalhes, destacando no artigo que as vítimas "sofreram um assassinato social: perderam os empregos, a paz e isolaram-se da comunidade".
É importante frisar que imprensa não é um órgão da Justiça, nem os repórteres são investigadores de polícia. Mas, em tempos de pouca apuração dos fatos, muito do que é publicado depende de "vazamentos" ou declarações das fontes oficiais, oficiosas e, também, misteriosas. É importante lembrar, também, que as instituições muitas vezes usam a imprensa para plantar informações em benefício próprio, seja ele político ou econômico. E, por outro lado, muitos jornalistas usam seu juízo de valor para pesar as palavras nas matérias, muitas vezes julgando a culpa ou a inocência dos personagens, quando os acusados ainda nem saíram das delegacias.
Votando ao caso do Padre Júlio Lancellotti, tenho acompanhado a cobertura do assunto pelo jornal O Estado de S. Paulo, que teve início na quarta-feira, dia 17 de outubro, com matérias no dia 18 e 19 , sempre no caderno Metrópole, sob o clichê Investigação. Houve uma pausa entre os dias 20 e 23 (que pegou o fim-de-semana, quando há um índice maior de leitura). A partir do dia 24 (quarta-feira) até hoje todos os dias saiu alguma matéira, inclusive nas edições do final de semana. Confira as manchetes do jornal (entre parênteses, "C" é o caderno e a página em que foram publicadas as matérias):
17/10 - Padre Júlio denuncia extorsão e Igreja cobra proteção do Estado (C1)
"Tenho de ser mais cuidadoso, perspicaz" (entrevista com o padre Julio Lancellotti)
"Pessoas infelizes se aproveitaram da solidariedade do padre", diz Suplicy
Religioso atua na área social desde os anos 70
18/10 - Acusado de achaque a padre negociava carros de luxo
19/10 - Padre vai para Roma e pede proteção para a mãe
24/10 - Padre Júlio cancela viagem para Roma (C3)
25/10 - Padre Júlio: polícia apura denúnica de 'ato libidinoso' (C14)
26/10 - Polícia quer ouvir funcionários do padre Júlio (C3)
27/10 - Vizinho cita mais 4 em esquema contra padre (C7)
Entrevista com Everson Guimarães (ex-faxineiro preso que diz ter recebido do padre cinco envelopes com dinheiro)
28/10 - Polícia pedirá quebra de sigilo do padre Júlio (C5)
Ex-interno aponta local de saque de R$ 40 mil
Acusação é inverossímil, diz Greenhalgh (C7)
"Alarde esconde o caso Pórrio"
Arcebispo sai em defesa de padre (C8)
Prefeitura pede auditorias em ONG
29/10 - Polícia vai rastrear pagamentos deitos pelo padre Júlio a quadrilha (C3)
30/10 - Ex-interno teve sigilo quebrado em 2006, após denúncia à polícia (C4)
Delegado pede segredo de Justiça em processos
Lancelloti foi com casal comprar Pajero
31/10 - Padre Júlio denunciou à polícia em 2006 outra exotorsão, de traficante (C1)
Bandido acusou Lancellotti de forjar flagrante (C3)
Sacerdote deu R4 400 mil a casal, estima polícia
Se padre errou, Igreja vai admitir, dizem bispos
1º/11 - PM investigou ameaça a pedido de Lancellotti (C6)
Polícia investiga advogado por aluguel de apartamento para ex-interno
Ou seja, embora continue figurando como vítima, de acusador, Lancellotti tem ligeiramente passado a acusado, embora a imprensa tenha sido bastante cautelosa na forma de colocar ao público o andar das investigações. O que eu ainda não vi foi algum box ou chamada na imprensa, aproveitando a deixa para apresentar, por exemplo, estatísticas sobre a pedofilia no clero, já que o assunto acaba sendo levantado nas entrelinhas das matérias. Alguns exemplos de dados sobre o assunto:
- O jornal Correio Braziliense, de 16/11/2005, afirmava que, "segundo documento do Vaticano, 1,5 mil dos 18 mil padres que atuam no Brasil estão sendo investigados por suspeita de crimes sexuais. A maioria é acusado de pedofilia";
- Segundo a agência Ansa, em agosto a organização não-governamental norte-americana Rede de Sobreviventes de Abuso Sexual de Sacerdotes declarou que tem uma lista com mais de 90 padres mexicanos envolvidos em atos de pedofilia;
- Nos EUA, "para ser expulso o membro da Igreja precisa ser um pedófilo contumaz, com um histórico de abusos", trecho da matéria da VEJA. Os EUA, inclusive, foi alvo de muitas críticas pelo posicionamento da liderança da Igreja Católica ao tratar estes assuntos polêmicos. A SNAP - The Survivors Network of those Abused by Priests (Rede de Sobreviventes de Abuso Sexual de Sacerdotes) - citada na matéira da Ansa (acima), auxilia e denuncia casos de abusos, não só na Igreja Católica, mas também nas igrejas protestantes;
- Outros casos.
Como há "imprensas e imprensas", na Veja, Diogo Mainardi não poupou caracteres, fazendo uma maliciosa associação política com o governo Lula. Entre outras coisas, Mainardi afirma que o padre Júlio Lancellotti "será conhecido também como o coordenador da Pastoral da Mitsubishi Pajero" e que "dependendo do que a polícia descobrir, talvez não seja uma idéia tão boa assim botar o padre Júlio para cuidar de criança".
Já a revista Isto É deu o título para a matéria de O conto e o vigário. O jornalista Alan Rodrigues abre a matéria com a seguinte frase "Esta é mais uma daquelas histórias policiais que entopem publicações, levando muitos a divagações inconclusivas".
Para alguns, há a presunção de culpa do "bandido" (como afirmou Greenhalgh) e a presunção da inocência do padre Lancellotti. Para outros, há presução de culpa de ambos, já que um padre tão interessado em trabalhar com menores, em si, já poderia levantar suspeitas. O importante é que, independentemente do desfecho, as palavras foram escritas e proferidas e os juízos de valor apresentados. A reputação do padre Lancellotti, inegavelmente, foi abalada. Mesmo com uma biografia que inclui a presença marcante na Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo, desde seu início, a fundação da Casa Vida - entidade que abriga crianças abandonadas portadoras do vírus HIV e o trabalho no acompanhamento de adolescentes que cometeram atos-infracionais.
Aliás, num nível elevado, não teria sido a presunção de culpa que levou a Scotland Yard a matar o brasileiro Jean Charles, em Londres?
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