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Osso duro de roer

Noite de quarta-feira, 5 de dezembro de 2007. Em um dos auditórios do Hotel Ca’d’Oro, no centro de São Paulo, mais de 200 pessoas ouvem atentas as experiências de Rodrigo Pimentel. Não fosse um filme, do qual foi co-roteirista, talvez Pimentel continuasse apenas mais um dos ex-integrantes do BOPE, grupamento de elite da Polícia Militar carioca. Mas, Elite da Tropa (o livro) e Tropa de Elite (o filme), tornaram Pimentel ao mesmo tempo amado e odiado, pela crítica e pela sociedade. Ao lado de Pimentel, na mesa de debates esteve o teólogo Ed René Kivitz, escritor de Vivendo com Propósitos e Outra Espiritualidade. Na mediação dos trabalhos, em meio ao fogo cruzado, o Tenente-Coronel Gerson Pinheiro Gomes (Exército). Realizado por Galilea Consultoria e Treinamento, com a produção de Sérgio Pavarini e equipe, o debate apresentou um tema contundente: Não matarás: A viabilidade de uma cultura de paz.


O filme

Polêmico. Talvez o mais ameno dos adjetivos que recebeu. Fenômeno. Este adjetivo é, com certeza, também aplicado. O foco dessas opiniões é o filme Tropa de Elite, com direção de José Padilha, que estreou no último dia 05 de outubro. No primeiro final de semana em exibição nas salas de cinema, o filme atraiu cerca de 180 mil espectadores, um número alto para um filme nacional. Mas, o que mais chamou a atenção, foi a estimativa de que mais de um milhão de cópias da versão pirata (em DVD) já tinham sido comercializadas – fora o tráfego do filme disponibilizado pela Internet.

O roteiro, baseado em um Rio de Janeiro fictício de 1997, traz às telas um grupamento policial de elite, o BOPE (Batalhão de Operações Especiais), que sobe aos morros cariocas com a intenção de limpar o território. Para tanto, usa expedientes como a tortura e espancamentos. A liderança do grupo é do Capitão Nascimento (personagem de Wagner Moura), que tem fé em seu trabalho e nos meios que usa para chegar a um bom resultado. Porém, ao invés de satisfação pessoal, Nascimento passa a viver uma crise pessoal e familiar, sofre de crise do pânico e insônia. Paralelamente, o filme esbarra na questão da conivência de ONGs com a liderança do tráfico, além do outro lado da história, a sociedade classe média, que vive embaixo do morro, mas seria quem financia indiretamente a violência ao consumir os produtos do tráfico.


O nascimento de Capitão Pimentel no cinema

Na composição do personagem Capitão Nascimento, merece destaque a figura do Capitão Rodrigo Pimentel, responsável pela intensiva preparação de Wagner Moura para seu papel e co-roteirista do filme. Membro da Polícia Militar do Rio de Janeiro entre 1990 e 2001, Pimentel entrou na polícia aos 18 anos e foi capitão do BOPE de 1995 até 2000. É pós-graduado em sociologia urbana pela UERJ e hoje também atua como consultor de segurança. Sua primeira experiência com o cinema ocorreu entre 1997 e 1998, ainda na PM, quando participou do documentário Notícias de Uma Guerra Particular, dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund. O filme revela o dia-a-dia de policiais, moradores e traficantes, no morro da Dona Marta (RJ).

Cerca de cinco anos depois, fora da PM, Pimentel foi para detrás das câmeras. Colaborou na confecção de outro documentário, agora com o diretor José Padilha. Ônibus 174 trata de um seqüestrou que mobilizou o país, que assistiu pela televisão, o desenrolar do caso durante a tarde do Dia dos Namorados do ano 2000. Além da mídia, cerca de duas mil pessoas se aglomeraram na região do Jardim Botânico (RJ), a fim de assistir frente a frente cada lance, como se assistisse a um filme. À medida que o tempo passava, o ódio e o desejo de vingança aumentavam, levando a multidão a desejar cada vez mais a morte do seqüestrador, Sandro Rosa do Nascimento. Ao escolher o ponto de vista de Sandro, para o filme, Padilha e Pimentel foram taxados de “radicais de esquerda”, embora sempre tenham deixado claro que não queriam defender a atitude do ex-menino de rua, sobrevivente da chacina da Candelária (1993). Ao final, uma refém morta e Sandro morto no camburão da polícia, cujo comando da operação era do BOPE.

Durante as filmagens de Ônibus 174, Pimentel comentou com Padilha seu interesse em fazer uma ficção sobre a polícia do Rio de Janeiro. Enquanto o roteiro do filme era desenhado, em 2005 o ex-PM escreveu o livro Elite da Tropa, em parceria com André Batista e Luiz Eduardo Soares. Em 2007, Tropa de Elite – o filme – estoura, primeiro no mercado paralelo, e, depois, no cinema. Cinco anos após Ônibus 174, Padilha e Pimentel agora são acusados de adotar o ponto de vista da polícia para justificar a tortura e a violência, além de transformar Capitão Nascimento em herói.

Embora muitos acreditem que Capitão Nascimento é baseado apenas na história pessoal de Pimentel, este afirma que é um “personagem fictício baseado em acontecimentos ocorridos com ele e com outros amigos seus, integrantes do BOPE”.


“Não Matarás”

Como falar sobre espiritualidade, amor, paz e justiça a partir do filme Tropa de Elite? Para Ed René Kivitz, uma questão é primordial: reconhecer a “autoridade das autoridades: Deus”. Assim, é possível abordar o caráter religioso, como normatizador ou construtor da consciência.

Estabelecido este parâmetro, antes de mais nada é preciso observar que a expressão bíblica “não matarás”, integrante dos Dez Mandamentos da história judaico-cristã, melhor seria traduzida como “não assassinarás” ou “não construirás uma sociedade que mata”. Matar, sem assassinar, segundo Kivitz, é a morte que não ocorre como forma de retaliação, sem ser motivada pelo ódio.

A retaliação ou a vingança, aliás, seria uma errônea interpretação da Lei de Talião, “olho por olho, dente por dente”, já que esta determina o grau justo para que alguém exerça seu direito, uma vez que a ação de quem revida sempre supera o ato que a gerou.

Porém, em oposição aos Dez Mandamentos e à Lei de Talião, Jesus Cristo apresentou outras alternativas para lidar com a violência, dentre elas: virar a outra face, amar e abençoar o inimigo.

E como seria possível para a polícia, órgão que tem legitimidade perante o Estado e perante a sociedade, conter a violência? Para Kivitz, “conter a violência é diferente de conter bandido. Quando a polícia e o Estado entram no ciclo de ódio, eles retroalimentam a violência e precisam ser parados, pois não se constrói uma sociedade de paz sem justiça e é impossível construir uma sociedade de justiça sem a legalidade. Tudo que está acima da lei ou fora da lei é barbárie”.

Portanto, a atuação da sociedade norteia a construção da cultura de paz, através da formação de uma consciência de paz. Para isso, o teólogo cita Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”.


Vivendo na pele

Rodrigo Pimentel, em sua fala, acabou por concordar com Ed René, principalmente no ponto em que não é só a polícia a responsável pela violência, mas esta é um reflexo da construção de uma sociedade que mata. Por outro lado, Pimentel comentou a repercussão do filme, que, ao seu ver, fugiu do objetivo inicial, que era retratar o cotidiano da polícia carioca. Durante a preparação de Wagner Moura, para viver o personagem Capitão Nascimento, sempre destacou que era preciso “torturar sem ódio”. Em contraponto, concorda que “a sociedade autoriza informalmente o uso da força letal, através do chamado mandato policial. Segundo pesquisas, 91% da população carioca aprova a ação da polícia nos morros e favelas, mesmo que resulte entre 19 a 42 mortes”.

Um exemplo da reação da sociedade é o caso do Ônibus 174. “Se eu ouço disparos, corro para o outro lado. Naquele fim de tarde, o que está registrado pelas emissoras de televisão, inclusive com visão aérea, quando ocorreram os disparos, duas mil pessoas, ao invés de correr na região oposta, correram para a direção dos disparos. Ou seja, queriam a morte de Sandro”, comentou Pimentel. Outro exemplo: “Na exibição de Tropa de Elite, tanto no Leblon quanto no subúrbio, as cenas de tortura foram aplaudidas”, surpreende-se.

Porém, o ex-PM é enfático em afirmar que “a ilegalidade não funcionou na polícia do Rio. Só aumentou o número de mortes”, o que seria um exemplo prático de que realmente não é possível paz sem justiça e justiça sem legalidade.


Repercussão

“Não houve embate, polêmica e nem grandes controvérsias. Capitão Pimentel fez uma análise lúcida do problema da violência no Rio – e percebemos mais do que nas entrelinhas, de que o esforço governamental carece de inteligência. Já Ed René enfatizou a perspectiva cristã do amor e do Reino. Sem evangeliquês e com muita propriedade e equilíbrio. Duas referências para um tema tão relevante só poderia deixar gostinho de quero mais. O ponto alto veio nas respostas que os apresentadores deram aos questionamentos da platéia. É incrível como certas perguntas revelam uma inocência abismal de cristãos igrejeiros que pouco pensam e pouco compreendem os significados de sua fé”.

(Volney Faustini - diretor-executivo da Editora Atos,
consultor empresarial, preletor e blogueiro)



“Gostei do evento, foi bem relevante. Acredito que o Capitão Pimentel amadureceu suas idéias e não acredita mais na violência como solução. Fiquei surpreso com a posição do Ed René, ao afirmar que o Estado precisa deter o mal e para isso, às vezes, precisa matar, ao contrário da forma que a maioria evangélica afirma. Ele foi bem realista. Também achei interessante que ele falou que, embora todas as pessoas são redimíveis, uma coisa é ser redimida e outra é pagar pelo que fez”.

(Henderson da Silva Moret – videomaker e
mantenedor do blog OutraVia)



Registro

Confira as fotos do evento. Clique aqui (também em versão SlideShow).


Reflexão

Assim que soube do evento, lembrei-me de um texto do Frei Betto, publicado no site Adital:

Violência e Agressão

Friedrick Hacker (1914-1989), psiquiatra usamericano, analisou com propriedade as raízes da violência que impera neste mundo globocolonizado que se ajoelha reverente ao deus Mercado. A agressividade é própria da natureza animal, incluída a espécie humana. Denota o nosso espírito de sobrevivência.

Frente a determinadas circunstâncias, cada um é agressivo a seu modo: ironia, humor, astúcia desprezo, presunção etc. Violência é quando se rompe a barreira da alteridade e a força física se impõe sobre o mais frágil ou indefeso e como reação ao agressor.

Quase nunca entendemos como violenta a ação que atinge o outro, exceto quando nós somos as vítimas. Se a polícia cerca, na saída de um cinema, nosso grupo de amigos, e exige que fiquemos todos de mãos na parede e pernas abertas, enquanto nos revista, consideraremos uma violência. Se do alto da janela do apartamento vemos a mesma cena, com a diferença de que os detidos são jovens de periferia, admitimos que a polícia cumpre o seu dever.

Sentimos mesmo certo alívio por saber-nos protegidos pelo Estado que, sustentado por nossos impostos, nos oferece segurança. Se um dos amigos protesta pelo modo como está sendo apalpado e recebe em resposta um empurrão, fica patente a violência. Para o policial em nenhum momento houve violência. Julga apenas que cumpre o seu dever.

É o caso do pai que, ao retornar do trabalho, descobre que o filho mais velho bateu no mais novo. Para dar-lhe uma lição de que nunca deve bater em alguém mais fraco do que ele, o pai dá uma surra no mais velho. Sem nenhuma consciência de que pratica exatamente o que recriminou.

É essa contradição entre o discurso sobre a educação e os métodos aplicados que dissemina o comportamento violento. Por que o mesmo ato cometido por um é repreensível e, por outro é, legítimo? Esse pai jamais se considerará violento. Se questionado, dirá apenas que é seu dever educar.

Esta a estrutura em que a violência se apóia: é sempre praticada, como se fosse ato de justiça, legitimada por uma razão superior, seja o Deus dos cruzados ou dos fundamentalistas; a defesa da propriedade privada; o liberalismo do Mercado; os deveres de uma boa educação etc.

A violência é a mais primária forma de manifestação da agressão. Toda a estrutura da sociedade, com suas leis e instituições, contém boa dose de agressividade, assim como a disciplina que os pais impõem à boa educação dos filhos. Ela favorece a nossa convivência social e reprime nossas tendências auto-destrutivas.

O melhor exemplo de agressividade sem violência é o esporte. Já a violência é rasteira, cruel, repetitiva, o que permite à polícia identificar o modus operandi de criminosos, pois ela se propaga sem a menor criatividade, exceto os equipamentos bélicos concebidos para torná-la mais e mais brutal e massiva.

Para saber lidar com a agressividade é preciso certo refinamento de espírito. Já a violência é burra, não exige educação, está ao alcance de qualquer um. O mais grave é que nos acostumamos à prática da violência. Covardes, não ousamos usar as próprias mãos, mas aplaudimos quando a polícia espanca o bandido; a lei retroage a idade penal; o plebiscito libera o comércio de armas; o Estado decreta a pena de morte etc. Sem nos dar conta de que nos deixamos dominar pela parte mais primária de nosso cérebro, lá onde se aloja o réptil que nos precede na escala evolutiva e do qual somos tributários.

Se uma sociedade perde a sensibilidade à violência e ignora a limite que deve perdurar entre ela e a agressividade, isso aquece o caldo de cultura do autoritarismo. O sentimento de humilhação que a Primeira Guerra impôs ao povo alemão favoreceu a ascensão do “vingativo” Hitler. A derrota de Bush pai no Iraque, em 1991, impeliu boa parte da opinião pública dos EUA a apoiar, em 2003, o filho disposto a “lavar a honra”.

Ninguém é capaz de atacar seu semelhante, a menos que produza, entre si e o outro, a dessemelhança. Assim, o homem bate na mulher por considerá-la imbecil; o branco agride o negro por encará-lo como inferior; a grande nação decreta guerra à pequena que se nega a abrir mão de sua soberania; o líder popular passa a ser demonizado pela mídia, de modo a deslegitimar a causa que defende. Essa postura distancia, desculpabiliza, abre caminho à violência como legítima e até legal.

Não convém erradicar a agressividade própria do humano e que nos impele a alcançar metas e conquistas. O desafio é fazer a distinção ensinada por Hacker e criar uma cultura baseada no mais primordial paradigma da alteridade, que tem a sua origem Naquele que, radicalmente diferente de nós, nos criou à sua imagem e semelhança.

Frei Betto é escritor, autor de Treze contos diabólicos e um angélico (Planeta), entre outros livros.

1 Opiniões:

Volney Faustini disse...
9/12/07 11:13 PM

Li duas vezes o texto só pra ouvir o One Night! Muito bem relatado o evento, com foto e tudo. Já te linkei de lá do meu ...


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